A revista
Rolling Stones considera Construção a melhor música brasileira de todos os tempos. Leia abaixo:
O Brasil do começo dos anos 70 era uma terra de paradoxos. O governo do General Emilio Garrastazu Médici tinha em seu bojo o chamado “Milagre Brasileiro”, que prometia crescimento econômico recorde e baixa inflação. O país era campeão mundial de futebol e o slogan “Ame-o ou Deixe-o” era colado nos vidros dos carros. O que poderia estar errado? O preço para essa suposta estabilidade e ufanismo era alto. A censura tolhia a liberdade artística e a atmosfera repressora levava cidadãos insuspeitos para a cadeia. Depois de um breve período exilado na Itália, Chico Buarque retornou ao Brasil mostrando que não compactuava com a situação. Estava pronto para o confronto e explicitou isso em 1971, no LP Construção. E foi a música que deu título ao disco que mexeu com a cabeça das pessoas. “Construção”, quarta faixa do lado A do vinil original, é um épico, com duração de seis minutos e meio. Trata-se de uma crônica sobre a vida e a morte de um trabalhador. Um dos setores que mais se expandiam com o propalado crescimento econômico era o da construção civil. Operários eram peças de reposição, ganhando pouco e estendendo sua jornada de trabalho com infindáveis horas extras para garantir a compra dos bens materiais que eram anunciados na TV. Acidentes de trabalho eram acontecimentos corriqueiros. Ao colocar isso em canção, Chico criticou indiretamente o sistema, afinal a situação do operariado era consequência das ações do governo. O personagem anônimo de “Construção” sai de casa, beija a mulher e os filhos e vai para o trabalho. Lá, se anima e ergue uma parede “como se fosse máquina”. Faz uma pausa, come qualquer coisa e bebe uma cachaça. Cai do andaime e se estatela no meio da rua, “como um pacote, atrapalhando o tráfego”. Chico situa tudo em formato não discursivo, até mesmo impessoal. As estrofes são repetidas três vezes, com algumas palavras-chave sendo trocadas de posição. Mas são essas mudanças que tornam ambígua a compreensão da música. Na primeira vez, o cantor apresenta a história de uma forma lógica, quase jornalística. Na segunda repetição, a mesma história é contada, mas agora é levado em conta o estado psicológico do protagonista, que já estava se transformando num autômato. Na parte final, que não aparece na íntegra, o peão anônimo já se encontra demente e alucinado, não é dono de suas ações. O trabalhador teria morrido como consequência da falta de condições de trabalho ou teria se suicidado, desesperado diante de suas escassas perspectivas de vida? “Construção” não seria tão arrebatadora sem o arranjo sinfônico e imponente concebido por Rogério Duprat. O maestro usou a orquestra como um componente sinistro, complementando a cadência do samba de Chico. Os instrumentos aparecem a princípio emulando os caóticos ruídos da metrópole, suas buzinas e prédios em construção. No final, quando “Construção” se funde ao refrão de “Deus Lhe Pague”, a canção mais parece uma ópera demente no estilo de Gilbert & Sullivan. “Construção” passou incólume pela censura, mas a partir daí Chico ficou visado. Dois anos depois, o compositor declarou que “Construção” não tinha nada a ver com o operariado, que a letra não refletia uma experiência formal, e sim emocional. “Construção” ainda é referência para entender um período espinhoso da sociedade brasileira. Essa é a marca de um verdadeiro artista. - Paulo Cavalcanti