Nos últimos dias, a condução coercitiva do ex-presidente Lula na Lava Jato reacendeu as defesas acaloradas de uma trupe já pouco atuante em tempos de crise: a dos governistas.
De forma implacável, a construção de pelo menos cinco discursos foram repetidos à exaustão desde então, de cima para baixo, passando das principais lideranças do partido à base aliada, políticos locais e, por fim, a militância. A ideia era sempre muito clara – passar a culpa adiante, como se houvesse um cenário de perseguição por camadas ao governo, uma grande conspiração para derrubar não apenas a principal liderança do PT, e sua candidatura em 2018, como todo seu partido.
Mas quanto desses discursos se sustentam longe da retórica política? Muito pouco. Por isso, preparamos esse pequeno manual. Aqui, listamos o núcleo de cada chavão governista e o que está por trás deles: 5 clichês que você está cansado de ouvir dos petistas sobre a Lava Jato, e por que eles não passam de papo furado.
1. “LULA É PERSEGUIDO PELAS ELITES”
Você provavelmente ouviu muito isso nos últimos dias: Lula é perseguido pelas elites do país. Foi o que ele mesmo disse, após sua condução coercitiva pela Lava Jato. E ele não foi o único.
A senadora Fátima Bezerra, do PT, foi outra – qualificou a condução como o “maior espetáculo jurídico-midiático já produzido pelas elites do nosso país”. Ricardo Coutinho, governador da Paraíba, repetiu a dose e declarou que “nobres e necessários objetivos legalistas cada vez mais se confundem com desejos e estratégias de correntes políticas e de algumas elites econômicas retrógradas”. Jackson Barreto, governador de Sergipe, também fez coro à questão – disse que o caso “é interesse das elites, de setores da imprensa, de pessoas do Judiciário e do Ministério Público, dos setores mais ricos, para desmoralizar o homem público que promoveu os mais pobres e a classe trabalhadora”.
Logo, o discurso se espalhou. As elites voltaram a ocupar os holofotes, presente em cada discurso governista na última semana e repetido exaustivamente nas redes sociais.
Mas qual elite, exatamente? Aquela que está, assim como Lula, no centro dos escândalos? Marcelo Odebrecht é o 9º brasileiro mais rico na lista da Forbes; André Esteves é o 15º. Ao lado de outros tantos milionários, eles hoje fazem companhia a Lula nas páginas policiais da Lava jato. Essa elite não apenas foi parte importante de seu governo – e de seus escândalos – como está ligada a denúncias de favores prestados ao ex presidente, seus filhos e seu instituto. Lula, não bastasse, é acusado de ter atuado como lobista dessa mesma turma ao redor do mundo.
Ou seria a elite dos banqueiros? Porque essa, em especial, nunca ganhou tanto dinheiro quanto com os governos Lula e Dilma. A atual presidente, não por acaso, foi a candidata que mais recebeu doações de campanha dos grandes bancos na última eleição.
A dúvida ainda persiste. Qual elite? Boa parte dos homens mais ricos do país são declaradamente contrários ao impeachment da presidente Dilma. Muitos deles enriqueceram graças aos empréstimos subsidiados pelo governo – nos últimos anos, o BNDES concedeu 70% de seus empréstimos para pífio 1% das empresas, aquelas de grande porte cujo faturamento ultrapassa R$ 300 milhões por ano, permitindo a algumas poucas e nobres famílias um valor equivalente ao que destinava a pagar o Bolsa Família para 40 milhões de beneficiários.
A questão permanece sem resposta. Há uma elite perseguindo Lula, aparentemente. Quem quer que seja, porém, age na surdina. E pior: estupidamente não atua num governo que sempre agiu para defender seus interesses.
2. “SÓ O PT É INVESTIGADO”
Essa é uma indignação recorrente. E atende não apenas aos petistas de carteirinha – aqueles que militam na sede do partido, que se vestem de vermelho e entregam santinhos em tardes ensolaradas de eleição – mas a outra espécie um pouco mais envergonhada, menos interessada em assumir a posição de apoio ao governo – a do isento governista (e falarei mais sobre essa espécie em outra oportunidade). Pra essa turma, há algo inegável acontecendo na Lava Jato: o PT paga o pato por uma culpa que está muito longe de ser completamente sua.
Renato Janine Ribeiro, ex-Ministro da Educação, levantou a bola.
“Por que tantos querem que a investigação foque só o PT? A apuração não deve ser ampla, geral e irrestrita?”
E é, Renato. A operação Lava Jato investiga políticos de diferentes partidos, como Eduardo Cunha (PMDB), Renan Calheiros (PMDB), Fernando Collor (PTB), Romero Jucá (PMDB), Ciro Nogueira (PP), e tantos outros. Políticos como Pedro Corrêa (PP) e Luiz Argôlo (Solidariedade) já foram até presos pela operação. O Partido Progressista (PP) é o campeão entre os políticos investigados.
Na Lava Jato, conforme cita o Ministério Público Federal, “grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos executivos da Petrobras e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% do montante total de contratos bilionários superfaturados”. Entendeu? É exatamente por isso que o PT chama mais atenção que os partidos de oposição aqui: porque é ele quem controla, há mais de uma década, a maior parte da máquina pública federal, e não a oposição. Junto com o PMDB e o PP, partidos que fazem sustentação política ao seu governo, o PT construiu sua base burocrática dentro da Petrobras – tanto indicando diretores e conselheiros, quanto operadores do esquema.
Isso significa que a oposição não tem problemas de corrupção? Muito pelo contrário. Tem. E não por acaso, também paga o preço por isso. Eduardo Azeredo, ex-governador tucano de Minas Gerais, foi condenado recentemente a 20 anos e 10 meses de prisão pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro pelo caso que ficou conhecido como mensalão mineiro. Outro exemplo? O Ministério Público de São Pauloestá investigando um esquema de desvio de dinheiro de merenda escolar no estado (entre os investigados estão o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo e o ex-chefe de gabinete da Casa Civil do governador Geraldo Alckmin).
Por que os escândalos da Lava Jato chamam mais atenção que esses? Porque são esquemas envolvendo a máquina pública federal, que é do interesse de todo mundo – e com valores muito maiores. Para o ex-presidente do Tribunal de Contas da União, o ministro Augusto Nardes, o escândalo na Petrobras é o maior esquema de corrupção da história do país. Para o Ministério Público Federal, a Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. É muita grana. Segundo o coordenador da força-tarefa da operação, as propinas pagas desviadas dos cofres da Petrobras somam mais de R$ 6,2 bilhões (valor 60 vezes maior que o escândalo do Mensalão).
Como os valores envolvidos e o nível de complexidade do esquema demonstram: se a corrupção é uma arte desempenhada inegavelmente por todos os partidos do país, ninguém constrói esse quadro com a excelência do PT. E é por isso que ele está no coração da indignação nacional.
3. “O PT É VÍTIMA DE UM ESTADO DE EXCEÇÃO”
Estado de exceção. Ou quase isso. É o momento que vive o país, segundo os petistas. Para Rui Falcão, presidente do partido, a Lava Jato torna explícito que “há um risco efetivo de se gestar aqui um embrião do estado de exceção dentro do estado de direito”. E Falcão não é o único a dizer isso. Para Lula, o país vive “quase um estado de exceção“. Para Jandira Feghali, deputada federal pelo PCdoB, a condução coercitiva do ex presidente mostra “mais um passo na consolidação do estado de exceção“. Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, completa o coro e repete a expressão, dizendo que a “condução de Lula completa estado de exceção não declarado”.
Mas o que é afinal um estado de exceção? Se você fugiu daquela aula de história sobre a ditadura militar brasileira, a gente explica: é uma situação de restrição de direitos, decretada normalmente em situações de emergência nacional que, durante sua vigência, aproxima aquele que até então era um Estado sob um regime democrático, num regime autoritário. Mas, então – se nós vivemos um estado de exceção, quem é o responsável por isso?
Ninguém. O Brasil vive há 13 anos governado pelo partido que acusa um estado de exceção não declarado. Até o final do mandato Dilma, o PT terá indicado 8 dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal e 30 dos 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça, os dois órgãos máximos do Poder Judiciário brasileiro. O PT também tem as óbvias indicações do procurador-geral da República e do Ministro da Justiça. Até o próximo mês de maio, Dias Toffoli, ex-advogado do partido, é o presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
No Congresso, o governo possui maioria – os partidos que estavam na chapa que deu vitória à Dilma Rousseff elegeram 304 deputados; os que estavam na chapa da oposição elegeram 127 deputados. A situação se repete no Senado – dos 81 senadores eleitos em 2014, 53 eram da base aliada.
Mas se não existe, por que é dito? Simples. Estado de exceção aqui é apenas um discurso político para achacar a independência do Judiciário e pressionar a opinião pública a encarar as investigações da Lava Jato como inconstitucionais. Lorota. Dessa forma, qualquer prisão torna criminosos em mártires, e presos comuns em presos políticos. É a única alternativa para manter o projeto político ainda aceso.
4. “NUNCA SE INVESTIGOU TANTO QUANTO HOJE”
Esse é outro discurso comum. Ao longo dos últimos anos, a presidente Dilma insistiu em dizer que nunca ninguém mandou tanto a Polícia Federal investigar casos de corrupção como ela. Segundo Dilma, a Polícia Federal integra o seu governo e atua com total liberdade. Mas a realidade é um pouquinho diferente: a Polícia Federal não depende em nenhum momento da autorização de nenhum político para fazer o seu trabalho. Pelo contrário. Pela Constituição, a PF tem autonomia para conduzir investigações e inquéritos, da mesmíssima forma que fez por toda sua história ao longo de diferentes gestões federais.
O que o governo pode fazer aqui, pelo contrário, é impedir inconstitucionalmente o trabalho das investigações. E é exatamente disso que o governo Dilma vem sendo acusado de fazer em relação à Lava Jato.
Lembra da prisão do Delcídio? Pois é. Ela aconteceu sob a acusação de que ele estava tentando obstruir as investigações da Lava Jato. Pego, Delcídio, ainda líder do governo no Senado, prestou uma suposta delação premiada (ele não pode confirmá-la, com o risco de perder sua delação, caso ela exista, embora o próprio governo já a considere como certa) acusando Dilma de tentar interferir na operação em pelo menos três oportunidades.
Segundo a IstoÉ, que denunciou o fato, o senador afirmou que um encontro entre Dilma Rousseff, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo e o presidente do STF, Ricardo Levandowski na cidade do Porto, em Portugal, em julho do ano passado, teve como tema “a mudança nos rumos da Lava Jato. Contudo, a reunião foi uma fracasso, em função do posicionamento retilíneo do ministro Lavandowski, ao afirmar que não se envolveria”. A segunda tentativa envolveria indicar para uma das vagas no STJ o presidente do TJ de Santa Catarina, Nelson Schaefer. Em contrapartida, o ministro convocado para o TJ votaria pela libertação dos acusados Marcelo Odebrecht e Otavio Azevedo. “A investida foi em vão porque Trisotto se negou a assumir tal responsabilidade espúria. Mais um fracasso de José Eduardo em conseguir uma nomeação”. A terceira foi a nomeação de Marcelo Navarro para o STJ. E isso as que Delcídio teve conhecimento.
O próprio José Eduardo Cardozo decidiu abandonar o Ministério da Justiça com a justificativa de que estava sendo pressionado por lideranças petistas – de modo especial o ex presidente Lula -, para interferir na Operação Lava Jato.
5. “A CULPA É DA MÍDIA”
Essa é a provavelmente a maior cortina de fumaça da história das nossas discussões políticas. E a razão dela atuar com tanta força em tempos de crise é muito simples de explicar. A formação de opinião é uma espécie de jogo de puxar corda, onde cada lado busca criar uma armadilha para o outro – ter a imprensa como a grande vilã do governo gera pressão para o outro lado do cordão, transformando qualquer notícia não favorável a ele num mero exercício golpista de uma oposição midiática. No fim, o discurso é muito parecido com aquele papo de que o judiciário brasileiro cria um estado de exceção não declarado no país (aqui, qualquer condenação ao partido vira perseguição política).
Essa é a última etapa do processo. O crème de la crème da retórica populista. Sabe aquele papo de que a culpa disso tudo é das elites? Não se sustenta num olhar mais apurado. Não apenas Lula, como todos os criminosos envolvidos na Lava Jato, fazem parte de uma elite brasileira que sistematicamente vem apoiando os governos de seu partido. A culpa então é de uma pretensa perseguição ao PT? Muito menos. Toda base governista é investigada e criminalizada pelas ações da Lava Jato. Sem rodeiros, a culpa passa a ser do Judiciário, que cria um estado de exceção no país, certo? Também não. Estado de exceção aqui é apenas um discurso político para pressionar a opinião pública a encarar as investigações da Lava Jato como golpismo jurídico. Ah, então tudo no fim é uma conquista do partido, que manda investigar as operações e limpar a corrupção no país? Piorou. A Polícia Federal é um órgão com autonomia e não depende em nenhum momento da autorização de nenhum político para fazer o seu trabalho. Não bastasse, o governo está envolvido em escândalos de acobertamentos da operação.
Tudo isso em jogo, e buscando sistematicamente passar a culpa adiante a respeito das responsabilidades dos envolvidos naquele que é tratado como o maior caso de corrupção que se tem notícia no país, o vilão se torna aquele que conta toda história aos eleitores. Paradoxalmente, esse aqui é tratado constantemente como um caso de manipulação de massa – quando ele mesmo falsifica a realidade, atacando uma elite midiática (que de fato existe, e usualmente está ao lado do poder, recebendo bilhões em publicidade) em nome de uma elite política, que quase nunca é encarada também como uma elite.
É uma massa manipulada pregando contra a manipulação das massas. Como em todos os clichês apresentados aqui: uma lista de desculpas esfarrapadas, de meias verdades, de mentiras escancaradas feitas para sustentar uma realidade paralela, repetida incansavelmente nos palanques e nas redes sociais como a verdade libertadora, aquilo-que-a-imprensa-não-conta. E que não se sustenta, ao olhar mais apurado, pela única razão de que a maior oposição aos petistas não reside na imprensa, no Judiciário, na elite ou no trabalho dos tucanos.
Sua grande desgraça é um troço chamado realidade.
[ Spotniks ]
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