5 de março de 2009

O dia que não entrou para a história

(Por José Antonio Pedriali - no O Diário Online)

No dia 7 de março de 1827, a Marinha brasileira, comandada por um capitão escocês, sofreu a mais humilhante derrota de sua história; na vencedora Argentina, só uma cidade comemora

Não se recrimine caso jamais tenha ouvido falar dela. Não se recrimine também se nunca ouviu falar do fato mais importante ocorrido ali. Porque Carmen de Patagones é desconhecida pela maioria dos argentinos, e fica lá, na Argentina. E a maioria dos argentinos também desconhece o fato.
Carmen de Patagones está à margem esquerda do Rio Negro, que nasce na Cordilheira dos Andes e desagua no Atlântico, localizado 30 quilômetros adiante da cidade.
Está a cerca de mil quilômetros ao sul de Buenos Aires e, apesar de fazer parte desta província, está geograficamente localizada na Patagônia – uma planície de tundras (vegetação rala e intermitente), que tem início no rio Colorado, 40 quilômetros ao norte de Carmen de Patagones, e vai até o fim do continente americano, delimitado de leste a oeste pelo Atlântico e pelos Andes, respectivamente.
É um dos locais mais áridos e desolados do mundo e fustigado por ventos inclementes, sibilantes e gelados, aspirados do Pólo Sul. A Patagônia é um deserto escaldante durante meio ano e gélido na outra metade.
Surgida no meio desse nada, na segunda metade do século XVIII, Carmen de Patagones tem cerca de 18 mil habitantes e é uma cidadezinha simpática, que escorre por uma ladeira até encontrar-se com o rio Negro.
Tem um centro histórico relativamente bem conservado e sua Catedral, dedicada à Virgem do Carmo (Carmen), expõe, protegidas por um avançado sistema de segurança eletrônico, duas bandeiras do Império do Brasil.
Epa, o que nossas bandeiras estão fazendo lá, tão longe de casa?
Carmen de Patagones já foi apresentada, então chegou a vez do fato mais importante ocorrido lá: essas bandeiras fazem parte desse fato, pois o rio Negro e o Cerro da Caballada, bem pertinho da cidade, protagonizaram o maior vexame naval da história brasileira.
Em 7 de março de 1827, uma força-tarefa a serviço do Império do Brasil, formada por quatro navios de guerra e 650 marinheiros e soldados, foi derrotada por um bando de cavaleiros de má-fama e por corsários de várias nacionalidades. Desalojar esses corsários era a finalidade da missão.
Ninho de corsários
O Brasil estava em guerra com a Argentina (1825-28) pela posse do atual Uruguai – que chamávamos Província Cisplatina e os argentinos, Banda Oriental –, e os corsários eram a ponta-de-lança dos nossos adversários.
Dispondo de poucos navios de combate, os argentinos arregimentaram esses aventureiros para seu esforço de guerra, e a missão deles era apreender e saquear nossos navios mercantes.
A ação desses corsários causou prejuízos colossais à nossa frota mercante, provocou uma inflação enorme nos preços dos produtos de primeira a última necessidade e um rombo enorme nas finanças já desgastadas do Tesouro Imperial. E abalou a já abalada imagem de D. Pedro I.
Nossa força-tarefa era comandada por um jovem capitão escocês, James Shepherd, engajado em nossa Marinha desde março de 1823. Viera com o primeiro comandante naval do Império, Lorde Thomas Cochrane, seu conterrâneo e tão brilhante no mar quanto encrenqueiro e arrogante em terra.
Sob o comando de Lorde Cochrane, a Marinha Imperial, que teve início com um punhadinho de navios acanhados e de velame podre, expulsou a frota e os soldados que Portugal ainda mantinha em território brasileiro por não se submeter à independência declarada por D. Pedro I, em 1822. Independência, aliás, somente reconhecida do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul.
Até a Província Cisplatina, ocupada por Portugal durante a permanência de D. João VI no Brasil, a desdenhou.
Bastaram seis meses para Cochrane e seus mercenários ingleses, escoceses e norte-americanos – agora em poder de uma frota poderosa, arrebatada dos portugueses – consolidarem a independência.
Cochrane abandonou o serviço pouco mais de um ano depois de sua chegada – brigado com seus superiores, como era seu costume –, e os marinheiros que permanecerem a serviço do Império mal tiveram tempo de colher os louros por essa conquista: a guerra com a Argentina, que reivindicava a Banda Oriental, os convocava. A Marinha teria papel decisivo nesse conflito.
Cenário adverso
Bloquear o porto de Buenos Aires era fundamental para os propósitos brasileiros, mas a tarefa era difícil, apesar da superioridade da nossa frota sobre a dos argentinos – também tripulada e comandada por ingleses -, devido à extensão do estuário do Prata e seus muitos bancos de areia. O cenário era inadequado para nossos veleiros, feitos para o alto-mar.
Os argentinos tiraram o quanto puderam vantagem disso. Eles promoveram, na maior parte do tempo, uma guerra naval de guerrilha, distribuindo cartas de corso para minar a retaguarda de nossa Armada e atacando os navios mercantes brasileiros – e assim exigiram que parte dos navios de guerra fossem utilizados como escolta.
A ousadia desses corsários era tanta que eles não hesitavam em fazer presas diante da Baía da Guanabara.
Mais de 400 navios foram tomados, e sua mercadoria saqueada. Carmen de Patagones tornou-se o quartel-general desses corsários e o entreposto de comércio das mercadorias apreendidas por eles.
A acanhada e abandonada cidadezinha, acostumada desde os primórdios a todo tipo de restrição, subsistindo da pesca, do gado e da agricultura instável e mesquinha, vira-se da noite para o dia cercada de poder e riqueza.
E seus moradores não estavam dispostos a abrir mão da abundância e do luxo fáceis.

José Antonio Pedriali é editor de O Diário do Norte do Paraná e escritor. Prepara um livro sobre o combate em Carmen de Patagones

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