A patricinha haitiana que sobreviveu ao terremoto e se tornou desabrigada
por Gustavo Chacra, Estadão
Mensy Desfeignes estava perdida no meio de uma multidão de haitianos na fila para conseguir água e alimentos no estádio nacional de Porto Príncipe. Vestia apenas uma blusa cor de rosa e uma calça jeans no campo controlado por militares brasileiros que trabalhavam conjuntamente com os americanos na distribuição de ajuda humanitária para os afetados no terremoto. Seria uma patricinha de São Paulo. Quer dizer, não chega a ser uma patricinha dos Jardins, do clube Harmonia ou da academia Reebok. Seria mais de um bairro de classe média, como Santana ou Interlagos. No Rio, seria da Tijuca, não do Leblon.
Vivia bem, com os pais. Tinha um celular, mas não um Iphone. Tinha um computador que dividia com o restante da família. E uma TV. Talvez até fosse fã de Friends. De longe, me observou e perguntou se eu falava inglês. Em seguida, começou a contar a sua história. “Eu estou sendo tratada como cachorro. Não era para estar aqui, nesta fila, morando neste estádio, implorando por comida e água”, disse. Seu pai, segundo ela, é um conceituado artista plástico, mas todas as suas obras foram perdidas nos escombros. Sua mãe, também na fila com o irmãozinho, possuía um restaurante, que desmoronou no terremoto.
Mensy, que pede para ser chamada de Kym, seu apelido, disse que iria começar a estudar medicina. Seu sonho era ir morar com a irmã, Gaele, que é enfermeira em Nova York. Até agora, não conseguiu falar com ela. Eu me comprometi a tentar ligar quando voltasse a Nova York, já que meu celular não funciona bem aqui em Porto Príncipe. Enquanto conversávamos, ela era esmagada algumas vezes na fila que se prolongava em forma de zigue-zague no estádio de grama artificial que a seleção brasileira derrotou o Haiti por 6 a 0. Fluente em francês, creole e espanhol, além do inglês, ela diz que havia começado a estudar italiano para ter uma boa educação. “É a única coisa que poderá me ajudar no futuro. Mas estou com medo de ficar aqui para sempre, nunca mais ter minhas roupas, minhas fotos, minhas coisas, que estão no meio dos escombros. Agora, só tenho o que está naquela tenda”, me disse. Não queria tirar foto, porque achava que estava feia, sem poder se arrumar há alguns dias. Na verdade, desde antes do terremoto. No campo, que virou abrigo de refugiados, não há banheiros. E foi difícil convence-la a posar para o fotógrafo do Estado (a foto está na edição impressa).
Na fila, também tinham algumas outras pessoas com curso universitário e que pertenciam à classe média-média de Porto Príncipe. Robensin Silier se formou em engenharia elétrica recentemente. Também preocupado com a aparência, colocava a camisa para dentro da calça. A empresa onde trabalhava não existe mais. Por sorte, ninguém de sua família morreu quando a casa desmoronou. Todos estavam fora. Agora, ele é mais um morador do estádio. “Eu tinha sonhos. Trabalhava na minha área, queria ter uma carreira. Esta ajuda humanitária apenas contribui para amenizar a situação. Mas não pretendo morar em um campo de futebol e ficar nesta fila para conseguir comida. Minha única esperança seria começar a trabalhar na reconstrução. O problema é que não deve começar tão cedo”, diz. “Dá desespero. O Haiti era pobre, mas não deste jeito. Eu vivia bem”.
Beaubeun e Berny trabalhavam em uma revista alternativa de Porto Príncipe, onde havia um universo artístico crescente antes do terremoto. O nome da publicação é Passion. O primeiro deles está com o braço quebrado. “Eu era jornalista como você, mas agora a revista acabou. Dez pessoas morreram na redação. Eram nossos amigos, as pessoas com quem estávamos todos os dias”, lamenta. O outro acrescenta que não tem idéia do que poderá fazer a partir de agora. Como outros na fila, eles insistiam para o repórter contar a história deles. Todos entendem que a ajuda chegou. “Mas vai acabar logo, sempre esquecem da gente”, diz Mensy, ou Kym. “E tome cuidado com o seu dinheiro. Daqui a pouco, vão querer te roubar. Também esconda o seu celular”.